EXPULSÃO
DO PARTIDO E PERDA DE MANDATO
De um lado encontra-se a
fidelidade partidária considerada na dimensão exigente de lealdade ao estatuto,
programa e diretrizes legitimamente estabelecidas pelo partido, tal como
disciplinado no art. 17, §1º, da Constituição, implicante, no caso de
descumprimento, de sanção aplicada pela própria agremiação política. Essa
dimensão da fidelidade não se confunde com aquela, ultimamente reconhecida pelo
Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal Superior Eleitoral, em função de
mutação de antiga orientação jurisprudencial, presente de modo implícito na
Constituição como mera decorrência do sistema representativo, segundo o
entendimento daquelas Colendas Cortes, que autoriza a perda do mandato,
decretada pela Justiça Eleitoral, sendo ela para tanto provocada nas hipóteses
de cancelamento de filiação ou mudança de partido sem justa causa.
A presente Constituição
Federal, ante o disposto no art. 17 §1º, confere autonomia aos partidos
políticos para a definição de seu desenho interno, definindo sua organização e
funcionamento. Disso, decorre a possibilidade dos partidos apresentarem suas
próprias disposições normativas no sentido de regular a disposição da sua
estrutura e funcionamento. Aquilo que está implícito nessa liberdade é a
autonomia para a formação de uma estrutura interna democrática (SILVA, 2011, p.
407).
Porém, se por um lado é
garantida a referida liberdade para a organização dos partidos, não há previsão
constitucional expressa para a perda do mandato por infidelidade partidária.
Haverá perda do mandato, entretanto, na circunstância de cancelamento da
filiação partidária ou troca de partido pelo mandatário, inocorrente hipótese
de justa causa. Manifesta-se, aqui, um segundo tipo de fidelidade partidária
insuscetível de autorizar sanção, constituindo, portanto, a perda do mandato
decretada pela Justiça Eleitoral nos termos do novo entendimento do Supremo
Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral. Trata-se de uma autêntica
mutação constitucional, consequência de nosso modelo de democracia
representativa fortemente marcada pelo monopólio partidário das candidaturas
aos cargos eletivos. A Constituição, reitere-se não trata expressamente desse
segundo tipo de fidelidade.
Cuidaria, entretanto,
implicitamente nos termos da nova orientação jurisprudencial a propósito da
matéria. Nos termos da Constituição de 1988, como aliás, das anteriores, a
democracia brasileira, ao lado das técnicas de participação direta da
cidadania, erige-se a partir do conceito de mandato representativo. Ora, como
preleciona José Afonso da Silva,
o “(...)mandato se diz
político-representativo porque constitui uma situação jurídico-política com
base na qual alguém, designado por via eleitoral, desempenha uma função
política na democracia representativa. É denominado mandato representativo para
distinguir-se do mandato de direito privado e do mandato imperativo. O primeiro
é um contrato pelo qual o outorgante confere ao outorgado poderes para
representá-lo em algum negócio jurídico, praticando atos em seu nome, nos
termos do respectivo instrumento (procuração); nele o mandatário fica vinculado
ao mandante, tendo que prestar contas a este, e será responsável pelos excessos
que cometer no seu exercício, podendo ser revogado quando o mandante assim o
desejar. O mandato imperativo vigorou antes da Revolução Francesa, de acordo
com o qual seu titular ficava vinculado a seus eleitores, cujas instruções
teria que seguir nas assembleias parlamentares; se aí surgisse fato novo, para
o qual não dispusesse de instrução, ficaria obrigado a obtêla dos eleitores
antes de agir; estes poderiam cassar-lhe a representação. Aí o princípio da
revogabilidade do mandato imperativo. O mandato representativo é criação do
Estado liberal burguês, ainda como um dos meios de manter distintos Estado e
sociedade (...). Segundo a teoria da representação política, que se concretiza
no mandato, o representante não fica vinculado aos representados, por não se
tratar de uma relação contratual; é geral, livre, irrevogável em princípio, e
não comporta ratificação dos atos do mandatário”.
No Brasil, portanto, é
possível afirmar que o exercício do mandato decorre dos poderes conferidos pela
Constituição, capazes de garantir a autonomia do mandatário que vai sujeitar-se
aos ditames de sua consciência, ao programa partidário e às diretrizes
legítimas estabelecidas pelo partido através de órgão competente. O mandato,
portanto, compondo espécie de condomínio, é, a um tempo, do partido e do
parlamentar, ou melhor, é do parlamentar em função do partido, sendo certo que
o representante eleito, observado o estatuto e programa partidários, assim como
as diretrizes estabelecidas com base neles, mantendo lealdade, exerce-o com
ampla margem de liberdade.
É a opção pelo mandato
representativo que atrela o exercício da representação com as “exigências
deliberativas” do Estado Democrático Constitucional. Não haveria espaço para
deliberação democrática na vigência do mandato imperativo. Todavia, e esse é um
risco, a forte configuração do regime de fidelidade partidária pode conduzir a
prática representativa para o sistema do mandato imperativo. Para Eneida
Desiree Salgado,
Essa concepção de Parlamento
como órgão de deliberação não se coaduna com um mandato vinculado, em que os
representantes políticos recebem instruções, de seu eleitorado ou do seu
partido, e manifestam-se estritamente no sentido predeterminado, sendo impossibilitados
de refletir sobre os outros argumentos apresentados. (SALGADO, 2010, p. 71).
Assim, no tocante à
fidelidade partidária, há uma tensão que envolve (i) a natureza do mandato
(princípio da democracia representativa); (ii) a liberdade de consciência
(direito fundamental) e, finalmente, (iii) o princípio da fidelidade
partidária, esta considerada como atitude leal ao programa partidário. Cumpre
encontrar solução prestante de deferência simultânea aos termos em tensão. Deve
o intérprete, portanto, manejando técnica adequada (concordância prática ou
ponderação), harmonizar ou resolver o quadro de tensão. Por isso, a fidelidade
partidária não pode ser aplicada de qualquer modo, significando a vulneração
dos demais termos da equação referidos.
A violação da primeira
dimensão, observado o devido processo legal, autoriza a aplicação de sanção,
inclusive a expulsão se prevista nas disposições normativas internas do
partido. Substancia, portanto, hipótese de infidelidade-sanção. No segundo caso
não haveria propriamente emergência de sanção, pretende a nova orientação
jurisprudencial, mas antes perda do mandato por exigência do sistema.
José Afonso da Silva, mesmo
depois das decisões do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal
Federal que operaram o giro jurisprudencial referido, mantém a doutrina no
sentido de que a expulsão do partido por ato de infidelidade não importa em
perda do mandato. Em sentido distinto manifesta-se Augusto Aras, para quem, não
apenas a migração, mas já a infração tipificada, no estatuto partidário, como
ato de infidelidade passível de expulsão, importa, sim, em perda do mandato
(ARAS, 2006, p. 342). José Afonso da Silva está certo.
Aliás, das manifestações do
Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral que operaram a
transmutação do entendimento anteriormente esposado a propósito da perda do
mandato do agente político trânsfuga, não há nada que autorize a suposição de
que compreensão idêntica alcançaria a hipótese de infidelidade, tomada como
caracterizando sanção, contemplada no art. 17 da Lei Fundamental. Aliás, da
leitura dos votos é possível divisar uma apartação entre as dimensões distintas
da infidelidade. Uma primeira, cumpre dizer, incide sobre os casos de migração
partidária despida de causa justificadora aceitável, importando em perda do
mandato, não como sanção, mas como simples decorrência do sistema
representativo. Uma segunda, incidente sobre o mundo partidário, confere
autonomia ao partido para, por seu estatuto, tipificar condutas desviantes de
natureza disciplinar, passíveis de aplicação de penalidades, entre elas, nos
casos mais graves, a expulsão. Aqui, sim, haveria uma sanção, autorizada pela
normativa constitucional, aplicada pelo partido. A mutação jurisprudencial
alcançaria apenas a infidelidade do trânsfuga, mas não aquela do
indisciplinado. Nesse caso, os artigos 15 e 55 da Constituição, tratando-se de
parlamentar, impediriam a perda do mandato em razão de expulsão do partido. De
modo que, em relação à hipótese, continuaria válido o antigo entendimento
doutrinário sintetizado por André Ramos Tavares:
Os atos de infidelidade ou
indisciplina podem redundar até na exclusão do infrator do partido. Para tanto,
haverá de constar a hipótese do próprio estatuto partidário em questão. Isso significa,
portanto, que as consequências só poderão ser de âmbito interno (daí poder
falar em liberdade partidária como circunscrita a esse âmbito). Como
consequência, no caso de infidelidade ou indisciplina partidária de candidato
já eleito, não haverá a perda do respectiva mandato. Aliás, para tanto, a
hipótese haveria de constar do rol indicado no art. 16 da C.F. (TAVARES, 2006,
p. 708).
Nesse sentido pronuncia-se
Joel J. Cândido: Conforme o art. 22 da Lei n. 9.096, de
19.9.1995 (LPP), a expulsão, inclusive, dá ensejo ao cancelamento imediato da
filiação partidária. O processo disciplinar interno, que aplica essa sanção ao
filiado, dar-se-á na forma prevista no Estatuto Partidário. Ultimada legalmente
a expulsão, o filiado expulso, se vier a se filiar a outra sigla, ainda que
após a data limite [...], não estará sujeito ao processo de retomada do mandato
eletivo [...]. (CANDIDO, 2008, p. 634).
O autor aproveita,
inclusive, para, com razão, alertar que a agremiação política que decidir pela
expulsão de um filiado titular de mandato haverá de levar em conta o fato de
que não poderá, nos termos da Resolução nº 22 610/2007 do TSE, que dispõe sobre
o tema, aforar medida objetivando a retomada do mandato eletivo tal como
ocorreria na circunstância de infidelidade decorrente de transfugismo.
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