segunda-feira, 20 de junho de 2022

EXPULSÃO DO PARTIDO POLÍTICO E PERDA DE MANDATO

 

 EXPULSÃO DO PARTIDO E PERDA DE MANDATO

De um lado encontra-se a fidelidade partidária considerada na dimensão exigente de lealdade ao estatuto, programa e diretrizes legitimamente estabelecidas pelo partido, tal como disciplinado no art. 17, §1º, da Constituição, implicante, no caso de descumprimento, de sanção aplicada pela própria agremiação política. Essa dimensão da fidelidade não se confunde com aquela, ultimamente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal Superior Eleitoral, em função de mutação de antiga orientação jurisprudencial, presente de modo implícito na Constituição como mera decorrência do sistema representativo, segundo o entendimento daquelas Colendas Cortes, que autoriza a perda do mandato, decretada pela Justiça Eleitoral, sendo ela para tanto provocada nas hipóteses de cancelamento de filiação ou mudança de partido sem justa causa.

A presente Constituição Federal, ante o disposto no art. 17 §1º, confere autonomia aos partidos políticos para a definição de seu desenho interno, definindo sua organização e funcionamento. Disso, decorre a possibilidade dos partidos apresentarem suas próprias disposições normativas no sentido de regular a disposição da sua estrutura e funcionamento. Aquilo que está implícito nessa liberdade é a autonomia para a formação de uma estrutura interna democrática (SILVA, 2011, p. 407).

Porém, se por um lado é garantida a referida liberdade para a organização dos partidos, não há previsão constitucional expressa para a perda do mandato por infidelidade partidária. Haverá perda do mandato, entretanto, na circunstância de cancelamento da filiação partidária ou troca de partido pelo mandatário, inocorrente hipótese de justa causa. Manifesta-se, aqui, um segundo tipo de fidelidade partidária insuscetível de autorizar sanção, constituindo, portanto, a perda do mandato decretada pela Justiça Eleitoral nos termos do novo entendimento do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral. Trata-se de uma autêntica mutação constitucional, consequência de nosso modelo de democracia representativa fortemente marcada pelo monopólio partidário das candidaturas aos cargos eletivos. A Constituição, reitere-se não trata expressamente desse segundo tipo de fidelidade.

Cuidaria, entretanto, implicitamente nos termos da nova orientação jurisprudencial a propósito da matéria. Nos termos da Constituição de 1988, como aliás, das anteriores, a democracia brasileira, ao lado das técnicas de participação direta da cidadania, erige-se a partir do conceito de mandato representativo. Ora, como preleciona José Afonso da Silva,

o “(...)mandato se diz político-representativo porque constitui uma situação jurídico-política com base na qual alguém, designado por via eleitoral, desempenha uma função política na democracia representativa. É denominado mandato representativo para distinguir-se do mandato de direito privado e do mandato imperativo. O primeiro é um contrato pelo qual o outorgante confere ao outorgado poderes para representá-lo em algum negócio jurídico, praticando atos em seu nome, nos termos do respectivo instrumento (procuração); nele o mandatário fica vinculado ao mandante, tendo que prestar contas a este, e será responsável pelos excessos que cometer no seu exercício, podendo ser revogado quando o mandante assim o desejar. O mandato imperativo vigorou antes da Revolução Francesa, de acordo com o qual seu titular ficava vinculado a seus eleitores, cujas instruções teria que seguir nas assembleias parlamentares; se aí surgisse fato novo, para o qual não dispusesse de instrução, ficaria obrigado a obtêla dos eleitores antes de agir; estes poderiam cassar-lhe a representação. Aí o princípio da revogabilidade do mandato imperativo. O mandato representativo é criação do Estado liberal burguês, ainda como um dos meios de manter distintos Estado e sociedade (...). Segundo a teoria da representação política, que se concretiza no mandato, o representante não fica vinculado aos representados, por não se tratar de uma relação contratual; é geral, livre, irrevogável em princípio, e não comporta ratificação dos atos do mandatário”.

No Brasil, portanto, é possível afirmar que o exercício do mandato decorre dos poderes conferidos pela Constituição, capazes de garantir a autonomia do mandatário que vai sujeitar-se aos ditames de sua consciência, ao programa partidário e às diretrizes legítimas estabelecidas pelo partido através de órgão competente. O mandato, portanto, compondo espécie de condomínio, é, a um tempo, do partido e do parlamentar, ou melhor, é do parlamentar em função do partido, sendo certo que o representante eleito, observado o estatuto e programa partidários, assim como as diretrizes estabelecidas com base neles, mantendo lealdade, exerce-o com ampla margem de liberdade.

É a opção pelo mandato representativo que atrela o exercício da representação com as “exigências deliberativas” do Estado Democrático Constitucional. Não haveria espaço para deliberação democrática na vigência do mandato imperativo. Todavia, e esse é um risco, a forte configuração do regime de fidelidade partidária pode conduzir a prática representativa para o sistema do mandato imperativo. Para Eneida Desiree Salgado,

Essa concepção de Parlamento como órgão de deliberação não se coaduna com um mandato vinculado, em que os representantes políticos recebem instruções, de seu eleitorado ou do seu partido, e manifestam-se estritamente no sentido predeterminado, sendo impossibilitados de refletir sobre os outros argumentos apresentados. (SALGADO, 2010, p. 71).

Assim, no tocante à fidelidade partidária, há uma tensão que envolve (i) a natureza do mandato (princípio da democracia representativa); (ii) a liberdade de consciência (direito fundamental) e, finalmente, (iii) o princípio da fidelidade partidária, esta considerada como atitude leal ao programa partidário. Cumpre encontrar solução prestante de deferência simultânea aos termos em tensão. Deve o intérprete, portanto, manejando técnica adequada (concordância prática ou ponderação), harmonizar ou resolver o quadro de tensão. Por isso, a fidelidade partidária não pode ser aplicada de qualquer modo, significando a vulneração dos demais termos da equação referidos.

A violação da primeira dimensão, observado o devido processo legal, autoriza a aplicação de sanção, inclusive a expulsão se prevista nas disposições normativas internas do partido. Substancia, portanto, hipótese de infidelidade-sanção. No segundo caso não haveria propriamente emergência de sanção, pretende a nova orientação jurisprudencial, mas antes perda do mandato por exigência do sistema.

José Afonso da Silva, mesmo depois das decisões do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal que operaram o giro jurisprudencial referido, mantém a doutrina no sentido de que a expulsão do partido por ato de infidelidade não importa em perda do mandato. Em sentido distinto manifesta-se Augusto Aras, para quem, não apenas a migração, mas já a infração tipificada, no estatuto partidário, como ato de infidelidade passível de expulsão, importa, sim, em perda do mandato (ARAS, 2006, p. 342). José Afonso da Silva está certo.

Aliás, das manifestações do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral que operaram a transmutação do entendimento anteriormente esposado a propósito da perda do mandato do agente político trânsfuga, não há nada que autorize a suposição de que compreensão idêntica alcançaria a hipótese de infidelidade, tomada como caracterizando sanção, contemplada no art. 17 da Lei Fundamental. Aliás, da leitura dos votos é possível divisar uma apartação entre as dimensões distintas da infidelidade. Uma primeira, cumpre dizer, incide sobre os casos de migração partidária despida de causa justificadora aceitável, importando em perda do mandato, não como sanção, mas como simples decorrência do sistema representativo. Uma segunda, incidente sobre o mundo partidário, confere autonomia ao partido para, por seu estatuto, tipificar condutas desviantes de natureza disciplinar, passíveis de aplicação de penalidades, entre elas, nos casos mais graves, a expulsão. Aqui, sim, haveria uma sanção, autorizada pela normativa constitucional, aplicada pelo partido. A mutação jurisprudencial alcançaria apenas a infidelidade do trânsfuga, mas não aquela do indisciplinado. Nesse caso, os artigos 15 e 55 da Constituição, tratando-se de parlamentar, impediriam a perda do mandato em razão de expulsão do partido. De modo que, em relação à hipótese, continuaria válido o antigo entendimento doutrinário sintetizado por André Ramos Tavares:

Os atos de infidelidade ou indisciplina podem redundar até na exclusão do infrator do partido. Para tanto, haverá de constar a hipótese do próprio estatuto partidário em questão. Isso significa, portanto, que as consequências só poderão ser de âmbito interno (daí poder falar em liberdade partidária como circunscrita a esse âmbito). Como consequência, no caso de infidelidade ou indisciplina partidária de candidato já eleito, não haverá a perda do respectiva mandato. Aliás, para tanto, a hipótese haveria de constar do rol indicado no art. 16 da C.F. (TAVARES, 2006, p. 708).

Nesse sentido pronuncia-se Joel J. Cândido: Conforme o art. 22 da Lei n. 9.096, de 19.9.1995 (LPP), a expulsão, inclusive, dá ensejo ao cancelamento imediato da filiação partidária. O processo disciplinar interno, que aplica essa sanção ao filiado, dar-se-á na forma prevista no Estatuto Partidário. Ultimada legalmente a expulsão, o filiado expulso, se vier a se filiar a outra sigla, ainda que após a data limite [...], não estará sujeito ao processo de retomada do mandato eletivo [...]. (CANDIDO, 2008, p. 634).

O autor aproveita, inclusive, para, com razão, alertar que a agremiação política que decidir pela expulsão de um filiado titular de mandato haverá de levar em conta o fato de que não poderá, nos termos da Resolução nº 22 610/2007 do TSE, que dispõe sobre o tema, aforar medida objetivando a retomada do mandato eletivo tal como ocorreria na circunstância de infidelidade decorrente de transfugismo.


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