PARLAMENTAR EXPULSO PELO PARTIDO NÃO PERDE
MANDATO
A votação da reforma da
Previdência foi marcada por situações de insubordinação por parte de
parlamentares que preferiram votar contrariamente ao posicionamento de seus
respectivos partidos. O chamado “fechamento de questão”, acordo dentro dos
partidos para que todos os membros votem de forma unânime, foi contrariado,
dentre outros, pelos parlamentares do PDT Alex Santana (BA), Flávio Nogueira
(PI), Gil Cutrim (MA), Jesus Sérgio (AC), Marlon Santos (RS), Silvia Cristina
(RO), Subtenente Gonzaga (MG) e Tabata Amaral (SP).
Foi o assunto mais
comentado, todos eles, porém, foram suspensos e estão impedidos de “falar em
nome do partido, ter função em nome do partido, participar da direção do
partido até a decisão final do diretório nacional”, conforme declarou Carlos
Lupi, presidente da sigla. O Conselho de Ética do PSB também abriu processo
contra seus representantes: Emidinho Madeira (MG), Felipe Carreras (PE), Felipe
Rigoni (ES), Jefferson Campos (SP), Liziane Bayer (RS), Luiz Flávio Gomes (SP),
Rodrigo.
Agostinho (SP), Rodrigo
Coelho (SC), Rosana Valle (SP), Ted Conti (ES) e Átila Lira (PI). Outro caso
recente de destaque é o do hoje deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG), cuja
expulsão do PSDB vem sendo especulada pela mídia, e quem teria recebido um
ultimato da cúpula de seu partido pedindo sua saída em virtude do recebimento
de uma denúncia por crime de corrupção passiva.
Tais atos e suas
consequências são matéria de disciplina partidária, caso particular da
disciplina presente em toda associação, que requer o respeito de todos os seus
filiados a um conjunto de princípios, objetivos e um programa da organização
partidária. Em que pese a Constituição Federal de 1988 tenha possibilitado aos
estatutos dos partidos estabelecerem normas de fidelidade e disciplina, na
prática restou apenas o direito de instituir penalidades para atos de
indisciplina de seus representantes no Legislativo e no Executivo. Obedecidos
os limites e garantias do artigo 5º e do artigo 17, parágrafo 1º da
Constituição, as punições variam da advertência, suspensão, destituição do
exercício de funções em órgãos do partido até, no limite, a expulsão do
filiado. Líderes do PDT, PSB e PSDB poderiam legitimamente punir seus membros
com a expulsão dos partidos, resguardadas as garantias procedimentais da
Constituição. A questão que cabe indagar é: a expulsão do partido gera a perda
do mandato?
Para responder de modo
simples, não. A sanção máxima possibilitada ao partido é a expulsão do membro
indisciplinado, não podendo isso legitimar a perda do mandato. No caso,
efetuada a expulsão, os parlamentares permanecem na condição de “sem partido”
até que optem por um partido diverso.
Situação semelhante à
indisciplina, porém de efeitos distintos, ocorre com a infidelidade partidária.
Nela o candidato opta por abandonar o partido durante o mandato. O instituto
foi introduzido no ordenamento brasileiro pela Constituição de 1969, vindo a
perder sua eficácia com a Emenda Constitucional 25/85. Na elaboração da
Constituição de 1988, o debate foi novamente suscitado e o tema passou a fazer
parte da esfera estatutária dos partidos políticos, sem ainda uma disposição
clara da legislação e dos tribunais a respeito da perda do mandato.
A discussão girava em torno
de duas teorias: A primeira, do mandato partidário, afirma que
o mandato pertence ao partido, não ao político; em contrário, a teoria do
mandato imperativo ou mandato representativo afirma que o eleito é
representante de seus eleitores e, por isso, pode se desvincular da vontade
estabelecida entre os demais membros. Para Paulo Bonavides, ao aglutinar interesses
individuais outrora esparsos para formar uma vontade organizada, superava-se a
“pulverização individual do século XIX, da democracia liberal, mais atenta a
uma liberdade abstrata e, por isso mesmo, menos realista do que a uma
influência efetiva e organizada dos cidadãos na direção dos interesses
coletivos”. Esses interesses seriam discutidos na esfera pública de modo a
canalizar democraticamente as vontades individuais, opondo as vontades
representadas por partidos diversos.
No caso da troca ou abandono
de um partido, o representante abriria mão da representatividade emanada pelos
anseios de um conjunto de eleitores identificados com os princípios e objetivos
daquele partido. Na opinião de Orides Mezzaroba, a partir desse raciocínio, não
há que se falar em proteção de mandato para os representantes infiéis, os quais
muitas vezes incorporam os mandatos políticos como se fossem propriedades
pessoais. Pela lógica do sistema eleitoral brasileiro, que admite também o voto
de legenda, os mandatos daqueles representantes eleitos por esse recurso
deveriam pertencer ao Partido, cabendo a este último resguardar a confiança no
representante depositada pelos seus militantes e simpatizantes, através do
acompanhamento permanente das ações legislativas posta em prática pelo
parlamentar.
Consequência lógica da
teoria, a perda do mandato não foi, todavia, prevista pela Constituição
Federal.
Ao considerar a perda dos
direitos políticos por cassação, perda ou suspensão, apenas nos casos descritos
no próprio texto constitucional (artigo 15), remetendo-se ao teor estrito do
artigo 55, não era claro se o parlamentar que abandonasse o partido pelo qual
foi eleito sofreria a perda do mandato. A controvérsia era resolvida pela
interpretação do texto constitucional como omisso, pois, segundo Moreira Alves,
se quisesse punir a infidelidade, “bastaria ter colocado essa hipótese entre as
causas de perda de mandato, a que alude o art. 55”. O Tribunal Superior
Eleitoral, em mesmo sentido, não via condições para a sanção de perda de
mandato sem indicativo expresso da norma constitucional, alertando para o
perigo de atribuir tal efeito a um ato emanado com base em normas partidárias.
O ano de destaque para a
infidelidade partidária foi 2007. O Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo
Tribunal Federal firmaram a posição que consolida a possibilidade de perda do
mandato eletivo por infidelidade partidária.
Para o TSE, na Consulta
1.398, proposta em março, a lógica decisional foi que, sendo o sistema
proporcional resultante do quociente eleitoral apurado entre diversos partidos
e coligações, não pode o eleito tratar seu mandato como “algo integrante do
patrimônio privado de um indivíduo, de que possa ele dispor a qualquer título,
seja oneroso ou seja gratuito, porque isso é a contrafação essencial da
natureza do mandato, cuja justificativa é a função representativa de servir, ao
invés de servir-se”, segundo se pronunciou o relator, ministro César Asfor
Rocha. A decisão do mérito se relacionava a uma situação de evidente
desconforto institucional pela debandada de 36 parlamentares que trocaram de
partidos naquele ano num Congresso composto de apenas 31 deputados federais
eleitos que alcançaram por si mesmos o quociente eleitoral.
Em outubro, haveria uma nova
consulta (1.407), tendo por objeto o sistema majoritário. O resultado foi o
mesmo, pautando-se no argumento da necessária intermediação dos partidos
políticos, uma vez que “se a soberania popular é o primeiro dos ‘fundamentos’
da República federativa do Brasil (inciso I do art. 1º), e se tal soberania é a
que se exerce ‘pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor
igual para todos’ (parte introdutória do art. 14), nada disso é
operacionalizado senão pela sobredita intermediação partidária”, conforme voto
do relator, ministro Carlos Ayres Britto.
Resolvido o problema para a
discussão em abstrato, coube aos partidos prejudicados pedir de volta os
mandatos de seus ex-membros infiéis: a Mesa da Câmara dos Deputados negou o
pleito e foi alvo de mandados de segurança impetrados por PPS, PSDB e DEM
(mandados de segurança 26.602, 26.603 e 26.604). Ao todo, os infiéis eram 23.
Após um julgamento em bloco que durou dois dias, por 8 votos a 3, o STF se
posicionou favorável à perda de mandato parlamentar por infidelidade
partidária; indeferiu, contudo, os mandados de segurança a fim de preservar os
parlamentares que haviam trocado de partido antes da consulta ao TSE.
Em resposta ao julgamento da
corte constitucional, faltava o TSE indicar o procedimento pelo qual se daria a
perda do mandato. Em 13 artigos, a Resolução 22.610/07 daria conta de
estabelecer o “processo de perda de cargo eletivo, bem como de justificação de
desfiliação partidária”. Seriam elencados prazos e os critérios excepcionais de
mudança de partido:
·
grave perseguição pessoal por parte do partido político;
·
mudança substancial na ideologia partidária;
·
criação de um novo partido político;
·
fusão ou incorporação de partido.
Tais critérios teriam de ser
sopesados ao longo dos anos tendo em vista circunstâncias próprias do cenário
político: como demonstrar a mudança de ideologia de um partido? Quais elementos
probatórios demonstrariam a grave perseguição pessoal?
Em 2015, com a minirreforma
eleitoral (Lei 13.165/15), o tema foi finalmente disciplinado por lei.
Introduziu-se, na Lei 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos), o artigo 22-A, o
qual, em seu caput, passou a prever a expressamente a perda de mandato do
detentor de cargo eletivo que se desfiliar, sem justa causa, do partido pelo
qual foi eleito. Tal positivação, contudo, deu-se não para afirmar a regra (já
estabelecida jurisprudencialmente), senão para esclarecer as exceções a ela. No
parágrafo único do citado dispositivo, norma interpretativa atribuiu sentido ao
que poderia ser admitido como justa causa para desfiliação sem a conseguinte
sanção.
Além de repetir duas
exceções já previstas na resolução do TSE, as novidades, introduzida por lei,
consistiram na extinção de uma hipótese (criação de um novo partido) e na
criação de outra (mudança de partido efetuada durante o período de 30 dias que
antecede o prazo de filiação exigido em lei para concorrer à eleição, majoritária
ou proporcional, ao término do mandato vigente). Institui-se, pois, a assim
chamada "janela partidária", um período de 30 dias corridos antes do
prazo de filiação o qual se encerra, segundo a legislação atual, seis meses
antes do pleito. Nesse período, os parlamentares podem trocar de partido sem a
ameaça da sanção de perda de mandato. Finalmente, há que se mencionar uma nova
hipótese de troca de partido criada pela Emenda Constitucional 97, de 2017 (que
instituiu, novamente, a "cláusula de barreira" ou "de
desempenho"), a qual prevê a possibilidade de troca de partido, sem perda
de mandato, aos eleitos por partidos que não preencherem os requisitos
constitucionais para ter direito ao fundo partidário e acesso gratuito ao rádio
e à televisão.
Finalmente, de modo a
distinguir os eleitos pelos sistemas majoritário e proporcional, veio a Súmula
67 do TSE, em junho de 2016: “A perda do mandato em razão da desfiliação
partidária não se aplica aos candidatos eleitos pelo sistema majoritário”.
Dentre as polêmicas
envolvendo a perda de mandato, foi noticiado em jornais de grande circulação
que, se Aécio Neves fosse expulso do PSDB, perderia o mandato de deputado
federal. Tal informação está errada. A expulsão não gera perda do mandato,
ficando o parlamentar apenas na condição “sem partido”, até que se filie a
outra legenda. É o mesmo caso se os deputados suspensos de fato forem expulsos
de seus partidos: não serão considerados “infiéis”, uma vez que sequer partiu
deles a opção pela desvinculação, tendo sido, portanto, somente
“indisciplinados” ao votarem de modo oposto. Mantendo seus mandatos, poderão se
filiar a outros partidos. Caso semelhante também ocorreu com Cabo Daciolo,
eleito deputado federal pelo Psol, mas expulso da legenda devido ao
posicionamento antagônico à ideologia do partido. Posteriormente, se filiou ao
Patriota e concorreu à Presidência da República, ainda na condição de deputado.
Trata-se assim uma exceção à regra de que o mandato pertence ao partido.
A título de argumento ad
absurdum, na hipótese contrária, ou seja, se tal expulsão ensejasse a
consequente perda do mandato, criar-se-ia um ambiente de total controle dos
atos e votos dos membros, sempre sob o risco de arbitrariedades e de interesses
escusos dos “caciques” de ocasião. Ou pior: os partidos políticos, enquanto
pessoas jurídicas de direito privado, teriam o poder de cercear direitos
políticos, julgando seus membros à luz dos estatutos partidários, instrumentos
normativos emanados sem qualquer participação democrática ou interação
republicana, limitados apenas ao efeito horizontal das normas constitucionais
dispostas no artigo 5º. Assim, assegurando o papel representativo aos partidos
políticos, mas impedindo um retorno ao ambiente das facções, a Constituição é
clara ao proteger os votos do parlamentar em situações contrárias ao
“fechamento de questão”.
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